Trabalhando lendas, contos, cantorias, literatura oral de folhetos enquanto materialidades renascentes de culturas da voz em circuitos África/Brasil/África, focalizamos injunções multiculturais na perspectiva de contribuir para compreender rotas e circuitos em travessias do Atlântico e de participar de latentes diálogos entre tradições orais e escritas disseminadas em territórios de memórias orais.
A partir de argumentações de estudiosos como Hampatê Bá, Zumthor, Vigarello, em relação a tradições orais, culturas da voz, densidade histórica do corpo que é colocado como um dos suportes de culturais orais e registros de contos e cantorias como encontros/confrontos de letra, voz, imagens.
Nesse sentido, acompanhamos evidências (busca), ainda que fragmentárias, de rastros de territórios de oralidades e de corpos africanos e afro-brasileiros em memórias de pelejas travadas no chamado Nordeste do Brasil, desde finais do Oitocentos, sondando sinais de lutas e transgressões às perspectivas escravizantes de africanos nas margens do “Atlântico negro”.
Articulando o que captamos em folhetos de literatura oral e em tradicionais cantorias no Nordeste do Brasil, com contos narrados em África e no Brasil, surpreendemos inúmeras aventuras e histórias sobre animais. Tematizando façanhas de heróis com seus animais, animais heroicizados, ou “aventuras do reino encantado da bicharada”, narrativas de folhetos de literatura oral aproximam-se de memória cantada que ganhou registros de cronistas, viajantes, folclorista, literatos. Suas recolhas remetem a cantadores que revestiam-se de características de temidos animais.
Tais expressões populares, com vozes dissonantes entre seus narradores, apontam, para além de documentos convencionais, quão longo, conflituoso, complexo foi o fazer escravo de africanos vencidos e vendidos em portos de África e comprados no Brasil. O boi marcou fortemente o imaginário de todo o Brasil, proliferando nos folguedos bumba-meu-boi e em vários folhetos de cordel. Tal presença, “largamente disseminada entre povos bantu [sendo que] no período das colheitas é conduzido em procissão no meio de cantorias e danças”, foi considerada por Nei Lopes uma das “etiologias do Bumba-meu-boi.”
As cantorias, associadas a festas, pelejas, folguedos populares, operam como vias de acesso a esta Gesta dos Animais em tradicionais poéticas orais. A literatura de folhetos, herdeira de repertórios de cantorias e de histórias do romanceiro português, circula no Nordeste desde o final do século XIX, quando grupos populares conquistaram suporte material para impressão e transmissão de palavras cantadas. Os folhetos retomam narrativas de contos, aventuras, romances, preservando, em seus versos, memórias de histórias encantadas, “do tempo em que os bichos falavam”, sentavam à mesa para comer, dançavam, casavam, assombravam e intercruzavam reinos humanos e animais.
Poetas versificaram injunções dos reinos humano e animal, narrando visões de mundo em que animais participavam de experiências sociais, como em folheto do poeta José Hermínio, que associa estes tempos ao das histórias contadas por africanos, (....) no tempo que os animais falavam.
Reconstruindo cenários de terreiro de casa grande, onde nascera e se criara, este poeta (José Hermínio) registrou em folheto que, em fazendas escravagistas, nos descansos noturnos, era chegada a hora e a vez dos trabalhos da memória, que mobilizam o corpo e os sentidos sob a dinâmica boca/ouvido. Enquanto cantadores de muitas gerações, africanos tomavam a palavra e o ritmo de seus universos poéticos, marcados pelo encantamento da convivência de todos os seres e elementos da natureza, narrando aventuras trazidas de outros tempos e espaços.
Nestas memórias cantadas, todos “viventes” eram iguais em tempo, espaço, relações que deixaram recordações. Ainda chama atenção que características delineadoras de animais tornaram-se atributos qualificadores de perfis humanos, em sentido físico, moral ou mental.
- As narrativas vinculavam muitos valores morais
A narrativa popular projeta contextos de brincadeiras, de humor, de sátiras e inversões da ordem vigente, construindo cenários irreverentes, em criativa versificação onde animais ocupavam funções de “direção” em paisagens florestais.
- Animais como: Boi e Macaco eram personagens bem significativos nas narrativas e remitiam a uma vivencias, história e cultura África
Mais que simbologias do macaco, este conto expõe acentuadas resistências de africanos a trabalhos forçados, como intolerâncias entre povos de diferentes culturas. No seu enredo, liberdade representa o tempo em que os animais falavam; suas fugas e emudecimento, o tempo de reações, transgressões e lutas, dos dois lados do Atlântico, antes de sucumbirem à escravização.
Na perspectiva do conflituoso processo de escravização de africanos no Brasil, evidenciando que resistiram e lutaram, de múltiplos modos, a “ser escravo’’, o universo dos folhetos de cordel ainda produziu imagens referentes a esta não-aceitação da condição escrava.
Como Gilberto Freyre apontara em Casa–grande & senzala (1933), as transformações que o romanceiro português experimentou no Nordeste do Brasil, em suas interações com tradições africanas, passaram pela “boca das negras velhas ou amas-de-leite (…) que se tornaram entre nós as grandes contadoras de histórias”. Para Freyre, “o akpalô, constituíram “uma instituição africana que floresceu no Brasil na pessoa de negras escravas que só faziam contar histórias”, andando “de engenho em engenho”. Por seu intermédio, “(…) histórias africanas, principalmente de bichos – bichos confraternizando com as pessoas, falando como gente, casando-se, banqueteando-se – acrescentaram-se às portuguesas, de Trancoso, contadas aos netinhos pelas avós coloniais.
(...) Nina Rodrigues ressaltara a importância do “contador yorubano que muitas vezes se serve de um tambor, com o ritmo do qual preenche as narrativas”, sugerindo relações ritmo, cadência corporal, memória cantada, reatualização de tradições, leituras populares. Impregnado por formulações sobre a inferioridade e animalidade de hábitos africanos, Rodrigues filtrou crenças, costumes, corpos, ritmos, práticas de transmissão e de leituras africanas sob as lentes do microscópio científico da biologia. Com estes antolhos, mesmo trazendo dados que possibilitam trabalhar a complexidade com que grupos africanos e afro-brasileiros refizeram, atualizaram e transmitiram suas tradições e culturas orais em terras estrangeiras, sob violentos controles e punições escravizantes, os indícios de seus modos de memorização e exercícios de cantorias e leituras de contos, associados a musicalidades e gestualidades corporais, continuaram velados sob argumentações de estarem no denominado “animismo fetichista”, totemismo primitivo distanciado dos chamados “povos civilizados”.
Cadenciados por musicalidades inerentes a relações de corpos com artifícios sonoros, cantadores, contadores de histórias e outros profissionais desenvolvem gestos e performances compassados por pulsões corporais – sopros, pressões de dedos, fricção de arcos em cordas, batidas de palmas – no contato com instrumentos musicais. Corpos que se prolongam e afinam com instrumentos musicais constituem suportes de memórias e literaturas orais em culturas populares.
Para nossas perspectivas de estudo, culturas da voz africanas e afro-descendentes no Brasil, importa reter que grupos tributários de matrizes orais arquivam seus saberes vivos em provérbios – expressões sintéticas de contos, lendas, mitos – que, de longa ancestralidade, são continuamente atualizados e ressignificados, orientando condutas e relações comunitárias, posturas frente aos demais seres dos reinos vegetal, animal e mineral, quanto com seus antepassados, em renovadas interações com os universos visível e invisível. Tais grupos, constituídos por expressões de oralidade, interpretam, orientam e exercitam leituras e transmissões de suas experiências vividas a partir de lógicas de mentalidade proverbial, susceptível a diferentes leituras e sentidos em contextos temporal e espacialmente diferenciados, deslocando-se em dimensões trans-históricas.
Significativamente, a presença de animais em culturas populares do Nordeste do Brasil não se restringiu a contos, lendas, crenças, festas, provérbios, folhetos de literatura oral. Enquanto pressuposto de visões de mundo e de culturas constituídas em subjetivos e solidários intercâmbios com a natureza, expressões destas relações cultura/natureza espraiaram-se pelo cotidiano de regiões nordestinas, em torno de seu “dialético faunístico”, deixando perceber intensa imbricação de heranças indígenas, africanas e portuguesas.
Imagens e provérbios de tradições orais africanas, recolhidos no acervo do Museu de Ouro, longe de qualquer perspectiva de animismo fetichista, totemismo primitivo, surpreendem pelo refinamento e engenhosidade de injunções cultura/natureza entre povos e culturas africanas. Dimensões da historicidade destas relações podem ser acompanhadas em expressões artísticas expostas na Galeria de Arte de Johannesburg, que abriga “modernidade” ignoram outras lógicas e racionalidades culturais. Barbarizaram e empurraram seus portadores para tempos primitivos, incultos a-históricos.
Estranhamento e intolerância de etnólogos, antropólogos, médicos, psicólogos, literatos, folcloristas e demais estudiosos frente a costumes, tradições, crenças, valores de ameríndios, africanos e afro-brasileiros, colocados a margem do encontro/confronto do Velho com o Novo Mundo outras experiências de vida e de poder, de valores e expressões culturais. Percepções de mundo, práticas de leituras e escritas, corpos, sensibilidades, saberes, hábitos, culturas – historicamente ignoradas, descartadas ou desqualificadamente considerados tão-somente como índices hierarquizados de povos e culturas constituídos fora dos cânones letrados e científicos do expansionista iluminismo europeu -, a partir de movimentos sociais e estratégias de resistência culturais limítrofes vêm rompendo barreiras históricas e deslocando fronteiras.
Explicitando a visceral diferença das culturas africanas de tradição oral em relação às “(...) lâminas cartesianas que fatiaram o mundo” em reino animal, vegetal, mineral, humano, Hampâté Bâ deixa ver, para além de diferenças localizadas em termos de letrados/iletrados, que as divergências situam-se na cosmo visão de mundo, nas formas de viver, ler e interagir com as forças da natureza.
Fundado na iniciação e na experiência, (...) que se liga ao comportamento cotidiano do homem e da comunidade, a ‘cultura’ africana não é algo abstrato que possa ser isolado da vida. Ela envolve uma visão particular do mundo, ou melhor, dizendo, uma presença particular no mundo, concebido como um Todo, onde todas as coisas se ligam e interagem. (Hampâté Bâ).