A estranheza que nos causa a idéia de que a leitura seja um “veneno” devastador é proporcional à empatia que sentimos diante da afirmação de que a leitura é fator determinante para o sucesso das pessoas, e sendo capaz de minimizar os efeitos da pobreza, da cor, do gênero. No final do século XX, imagina-se que a leitura, revestida de uma aura positiva, é capaz de proporcionar os mais variados benefícios: tornar os sujeitos mais cultos e, por conseqüência, mais críticos, mais cidadãos, mais verdadeiros. (p.9-10)
Mas nem sempre (a leitura) foi vista dessa forma tão positiva. Ao contrário do que hoje fazemos, sucederam-se, ao longo da história diversos movimentos para afastar as pessoas da leitura, vista como grande perigo. A idéia de que os livros eram portadores de um ‘veneno lento que corroia as veias’ esteve subjacentes a variados movimentos de interdição de leitura. Os desejos de proscrevê-la ancoraram-se nas justificativas mais variadas. (p. 10)
Século XVIII Tissot diz que a leitura é prejudicial a saúde. (p. 10)
Mas, maior cuidado inspirava as leituras que apresentam perigos para a alma, aquela que coloca em risco a moral. Dizia-se que os livros divulgavam ideias falsas, fazendo-as parecer verdadeiras, estimulavam demasiadamente a imaginação, combatiam o pudor e a honestidade. (p. 10)
Os (...) romances pareciam ser os mais ameaçadores, pois colocavam os leitores em contato com cenas e situações reprováveis, subvertendo o sistema de valores no qual a sociedade deveria ancorar-se. (p. 10)
O poder de alterar comportamentos, atribuídos à leitura, não era, em si, um mal. O problema adivinha do fato de que os livros não ensinavam apenas atitudes recomendáveis. Eles corrompiam a inocência, afastavam da virtude, favoreciam o crime, pois as pessoas desejavam transpor para a vida aquilo leram nos livros. (...) Considerando a gama de malefícios, provocado pela leitura de romances, chegou-se a propor, na França, que houvesse leis proibindo tanto sua criação quanto a venda de romances nacionais e importados. (p. 12)
Não é necessário insistir na difícil relação mantida pelas instituições religiosas – sobretudo a Igreja Católica – com os livros. (...) a explicitação da ideia de que há mais maldade e perigo em heresias e erros difundidos por escrito e sob a forma de impressos do que naquelas proferidas em viva voz, ou praticadas. Isso por que os livros têm a capacidade de difundir mais amplamente as ideias e com menor alarido: (p. 13)
Assim como as questões morais são contíguas a questão religiosa, estas foram – e são ainda, em muitos lugares – contíguas ao poder político. Razões semelhantes às que deram origem ao desejo de controlar leituras religiosas conduziram à vontade de banir livros tidos por subversivos, seja porque contestava o sistema político em vigor, seja porque questionava a atitude dos governantes, seja porque os ridicularizavam. (p. 13)
A leitura (e o acesso à instrução escolar) faria perceber as desigualdades sociais, gerando descontentamento e insubordinação. Uma vez que os pobres deveriam permanecer pobres, seria melhor que não se alimentassem ideias que os fizessem desejar alterar seu estado. (p. 13-14)
Da mesma forma, o atual elogio à leitura não se dirige ao contato com os livros em geral. Ao mesmo tempo em que segundo dados da Unesco, a produção de livros e jornais assim como a frequência a biblioteca crescem, o fantasma da crise da leitura parece assombrar os países ocidentais. (p. 14)
Na verdade, lê-se muitos livros de auto-ajuda, de vulgarização cientifica, muita ficção cientifica, histórias em quadrinhos, lê-se muito livros hobby, sobre astro, música e do cinema, muitas recolhas de piada. Mas lêem-se poucos os “bons livros”: pouca filosofia, pouca literatura erudita, pouca reflexão política séria. (p. 14)
O repudio ou estimulo à leitura só podem ser bem compreendido se forem examinados os objetos que se tomam para ler e sua relação com questões políticas, estáticas, morais ou religiosas nos diferentes tempos e lugares em que homens e mulheres, sozinhos ou acompanhados, debruçaram-se sobre textos escritos. (p. 15)
A leitura não é uma prática neutra. Ela é campo de disputa, é espaço de poder. (p. 15)
-1 (...) breve amostra das diferentes relações estabelecidas pelos homens com os livros e a leitura ao longo do tempo. (p. 15)
CHARTIER. Roger. Parte I: História de leituras. In: Leitura, História e História da Leitura. ABREU, Márcia (org.). 2002. Mercado de Letras.
1. Por muito tempo historiadores ocidentais consideraram a relação entre impressão, publicação e leitura somente pelos padrões da invenção de Gutenberg, como se ela fosse uma condição necessária para a criação de um grande conjunto de leitores e para o desenvolvimento de publicação intensa. (...) Na China e no Japão - A gravação em madeira é mais bem adaptada que a tipografia às línguas que são formadas por um grande número de caracteres ou por vários alfabetos. Além disso, a gravação madeira mantém uma forte ligação entre o manuscrito e a publicação, uma vez que o bloco madeira provém de modelos de caligrafia. (p. 19)
A invenção de Gutenberg, embora de fundamental importância, não é a única técnica capaz de assegurar a disseminação em grande escala de textos impressos. (p. 20)
O tipo móvel foi inventado em civilizações asiáticas bem, antes se sua descoberta no Ocidente. O tipo móvel em terracota era usado na china desde o século XI. (p. 20)
A civilização da impressa e da publicação não pode ser restrita somente à “galáxia de Gutenberg” (p. 20)
2. (...) publicar uma texto não implica necessariamente em imprimi-lo. Por um lado, se é verdade que a impressão substituiu o manuscrito com meia de reprodução e disseminação textos após a metade do século XV, a cópia manual continua a ocupar um lugar importante na circulação de vários gêneros de textos. (difusão de cópias manuscritas entre números limitados de leitores) (p. 21)
(Escritores e eruditos) menosprezaram o comércio livreiro que corrompia ao mesmo tempo a integridade dos textos, distorcidos pelas mãos dos mecânicos rústicos (...), (p.21).
(...) é necessário lembrar quão numerosos são os gêneros e trabalhos antigos que de maneira alguma almejavam um objeto impresso como veículo e um leitor solitário e silencioso como alvo. Compostos para serem declamados ou para serem lidos em voz alta e compartilhados por um público ouvintes, invertidos como uma função ritual, tidos como máquinas designadas a produzir certos efeitos, eles obedecem às leis próprias, à transmissão oral e comunitária. (p. 21)
Desde a antiguidade ler em voz tem dois propósitos: 1 - função pedagógica – demonstrar ser um bom leitor; rito de passagem dos jovens - exibir o domínio da retórica e do falar em público. 2 – Propósito literário - é para o autor, colocar um trabalho em circulação, publicá-lo. (abandonado no inicio da idade moderna.) (p. 21-22).
A inversão de Gutenberg tornou possível a reprodução de textos em grande número de cópias, transformando, assim, as condições de transmissão e recepção de livros. (p. 22-21) – Com a impressão:
a) Reduziu-se o custo por copia da produção de um livro;
b) Reduziu-se o tempo necessário para produção de um livro;
c) Acesso do leitor individual ao um número maior de livros;
d) Cada livro poderia atingir mais leitores.
3. (...) não podemos considerar de maneira muito direta a inversão e a difusão da impressa como responsável por acarretar um rompimento fundamental na história da literatura. As ‘revoluções da leitura’ são múltiplas e não estão imediatamente ligadas à inversão ou às transformações da impressa. (p. 23)
Mudanças
Leitores passam de uma prática oral (compreensão do significado - antiguidade), para uma leitura silenciosa (visual – idade média séc. XII e XIII)
(...) a contrario dessa evolução nas sociedades ocidentais de hoje, nas quais as pessoas são consideradas iletradas não somente pelo fato de não ler de modo algum, mas também pelo fato de só serem capazes de entender um texto quando o lêem em voz alta. (p. 23)
A difusão da possibilidade de ler silenciosamente marca uma ruptura de importância capital. A leitura silenciosa permitiu um relacionamento com a escrita que era potencialmente mais livre, mais íntimo, mais reservado. Permiti uma leitura rápida, especializada e capaz de lidar com as complexas relações estabelecidas na página do manuscrito entre o discurso e suas interpretações, referências, comentários e índices. (p. 24)
4. A segunda revolução na leitura ocorreu durante a era da impressão, mas antes da industrialização da produção do livro. (p. 24) no Séc. XVIII na Alemanha, França, Inglaterra e Suíça. Mas, não ocorreram grandes mudanças na tecnologia de impressão.
Apoiou-se em diferentes circunstâncias:
a) Crescimento da produção de livros – triplicou (inicio do século e anos 80)
b) Multiplicação e transformação dos jornais
c) Triunfo dos livros de pequenos formatos
d) Proliferações das instituições (sociedades da leitura, clubes do livro, biblioteca de empréstimo), tornaram-se possível ler livros e periódicos sem comprá-los.
e) Desenvolvimento de novos gêneros textuais e novas práticas de leituras.
Os novos leitores devoravam um grande e uma imensa variedade de impressos efêmeros. Ele liam rápido e avidamente, submetendo o que tinha lido a um julgamento crítico imediato. Uma relação comunal e respeitosa com a matéria escrita, feita de reverência e obediência, deu lugar a um tipo de leitura mais irreverente e desprendida. (p. 25)
Hábitos mais antigos de leitura mudaram para uma nova forma literária. O romance foi lido, e relido, memorizado, citado e recitado. Os leitores eram tomados pelos textos que liam; eles viviam o texto, identificando-se com os personagens e com a trama. Toda a sua sensibilidade estava engajada nessa nova forma de leitura intensiva. (p.25)
Além disso, o hábito de leitura dos mais populares e numerosos foram direcionados durante um longo tempo pelos modos antigos. Para eles, ler livretos baratos vendidos por mascates na Inglaterra, França e Castela era uma tarefa difícil e altamente dependente da audição e da memorização. (p. 25)
5. No século XIX, nova categorias de leitores (mulheres, crianças e trabalhadores) foram apresentadas a cultura impressa e ao mesmo tempo a industrialização da produção de impressos trouxe novos matérias e modelos de leitura. (p. 26)
A tipologia dos modelos de relação com a escrita que se sucederam a partir da Idade Média (passando do modelo monástico de escrita para o escolástico de leitura, das técnicas humanistas dos lugares-comuns para os estilos de leitura religiosa e espirituais da Cristandade Reformada, dos hábitos tradicionais de leitura à revolução da leitura no Iluminismo) deu lugar a uma ampla diversificação das práticas de leituras nas sociedades contemporâneas. Com o século XIX a história da leitura entra na era das sociologias das diferenças. (p. 26)
6. Em nossa própria época, a transmissão eletrônica de textos trouxe outra revolução. (...) transforma a noção de contexto ao substituir a contigüidade física entre textos presente no mesmo objeto (...) por sua substituição nas arquiteturas lógicas que regem os bancos de dados, os arquivos eletrônicos e sistema de processamentos que tornam possível o acesso à informação. (p. 26 - 27)
A nova relação com o texto obriga a uma profunda reorganização da “economia da escrita”. Ao tornar a produção, transmissão e leitura de um dado texto simultâneo, e ao atribuir a um individuo as tarefas, até aqui distintas, de escrever, publicar e distribuir, a apresentação eletrônica dos textos anula as antigas distinções entre papéis intelectuais e funções sociais. (p. 27)
O mundo dos textos eletrônicos também remove a rígida limitação imposta à capacidade do leitor de intervir no livro. O objeto impresso impunha sua forma, estrutura e espaços ao leitor e não supunha participação material física do leitor. (...) tudo isso muda com o texto eletrônico. Ao apenas os leitores podem submeter o texto a uma série de operação (...), mas podem também tornar-se co-autores. (p. 27)
Tal mudança no suporte físico da escrita força o leitor a ter novas atitudes e aprender novas práticas intelectuais. (p. 28)
O texto em sua representação eletrônica, dissociada da materialidade e da localização convencionais, pode (em teoria) alcançar qualquer leitor em qualquer lugar. (p. 28)
7. A transferência de nossa herança escrita para tela criaria possibilidades incomensuráveis, mas causaria também violência aos textos ao separa-los de seu meio original, no qual foram publicados e apropriados. (p. 29)
Assim, parece-me que enfrentamos atualmente um duplo desafio. De um lado, a profunda transformação que está alterando atualmente todos os modos de publicação, comunicação e recepção da palavra escrita deve ser acompanhada por uma reflexão histórica, jurídica e filosófica. (...) A representação eletrônica dos textos não deve de modo algum implicar o rebaixamento, o esquecimento ou, pior ainda, a distribuição dos objetos que encarnaram, e encanaram originalmente os trabalhos do passado ou do presente. (p.30)
As estratégias de publicação sempre moldaram as práticas de leitura. Elas criam novos gênero de textos e novas fórmulas de publicação. Ao tornar os produtos de impressa mais barato e disponíveis, por exemplo, a um consumo “popular” (primeiro os livros para venda ambulante; mais tarde as coleções populares e os jornais), ofereceu-se ao público um número cada vez mais amplo e diversificado de materiais de leitura. Nesse sentido, a liberdade de escolha dos leitores só poderia ser exercida dentro de um conjunto previamente constituído com base em interesse e preferencias que não eram necessariamente os seus. (p. 30)
Dentro do território textual disponível, os leitores assumem o comando, dão significados às obras e as investem com suas próprias expectativas. Os recursos técnicos nunca tiveram uma significação unívoca. Eles podem ser dotados de diferentes usos e efeitos. Contra qualquer forma de determinismo tecnológico, temos que lembrar que as técnicas são aquilo que os produtores e usuários fazem dela. (p.31)
Mas temos que lembrar que somente preservando o entendimento da cultura impressa podemos saborear completamente a “flexibilidade extravagante” prometida pelas inovações tecnológicas. (p. 31)
Nenhum comentário:
Postar um comentário